NO VÃO DA ESCADA #2 - A música perfeita
Tudo surgiu quando pensei: o que estarão os músicos a fazer,
e a pensar, para além das óbvias consternações do momento, nesta altura de
pandemia, de reclusão ou semi-reclusão? Estarão a pensar: agora é que vou fazer
a música perfeita? Agora que temos espaço um pouco mais livre na mente, sem a
azáfama social e as pressões de agenda, vamos conseguir sacar a melhor
combinação de acordes, de ambiências, de temáticas, de intensidades, arranjos, imagéticas,
entre outras coisas capazes de demonstrar que o tempo de paragem e introspecção
são passíveis de nos libertar dopamina, serotonina, oxitocina, mais do que o
cortisol, e tudo mais que esta máquina frenética orgânica consegue gerar, como
resultado de uma enorme vontade de recuperar o tempo perdido? E voltar em
força? E aproveitar o hiato para reformular hábitos - corrigir defeitos também?
Conquistar o mundo. É agora! Acima de tudo, pôr-nos à prova em circunstâncias
inéditas e recorrer a métodos nunca antes adoptados. Porque os resultados podem
ser os mais inesperados, porque a situação é também ela singular, excepcional.
Bizarra, porque não? De bizarrias destas a criatividade pode agradecer, minimizando
os danos, só por isso, nunca por mais.
A velha história de que as contrariedades, a melancolia e a
desgraça são fortes catalisadores da criação, estou em crer (e já pesquisei um
pouco), não passa de um mito. Quero acreditar que sim. Se bem que já se dizia
que o poeta era um fingidor. Sim, o criativo, para se proteger, à sua sanidade
física e mental, convenientemente deve assumir esse papel, sob pena de alguma
desgraça (que já as houve). Vamos vê-la aos olhos de uns óculos virtuais, tão
em voga, ou para lá vamos. Os impulsos reprimidos dos nossos músicos podem
explodir. É esta a hora? Ou isso nunca esteve em causa? Os males nunca vêm por
bem, por mais que se insista no contrário. A aprendizagem, essa tem valor. Que
seja pela via positiva. Como alguém já disse, esta é a hora de ouvirmos o
silêncio. De nos ouvirmos a nós próprios a pensar. Não andávamos com tempo para
isso há muito, certo?
Quanto à música perfeita... bom, o título é mais um pretexto
baldio para abordar o assunto. Há inúmeros estudos científicos que falam do
tópico. A vida é matemática, muito complexa, é certo, ao ponto de considerarmos
esta hipótese a maior das calúnias. Mas é verdade que cruzando épocas, culturas,
ciência e os números, houve quem tirasse umas conclusões muito interessantes
(que podem "googlar" a qualquer altura).
A música perfeita à data será aquela que virá do silêncio!
Quero acreditar nisso. Com esta mesma deixa quero crer que será também a mais
genuína. Afinal de contas, o tempo "parou"! O ritmo desenfreado
fixou-se há alguns meses atrás. Quero crer que se diluíram tiques e
maneirismos. Menos preocupações com o mercado, talvez, que perece, numa das
suas alas. Por inerência, o prazer de criar estará potenciado, sobretudo à luz
da mais autêntica, fidedigna e original expressão da pessoa individual. Olhamos
mais para dentro de nós mesmos, neste momento. E ainda bem. Mais pessoalidade. É
o que transpõe. Mera palpitação (e perdoem-me alguma contradição).
A música perfeita será sempre a próxima, dirão os retóricos.
Conceito abstracto (desculpem-me também a falta de componente técnica do texto, se era o que esperavam). Mas o que vem por aí fora pode ser inaudito. Estamos na estaca
zero ponto qualquer coisa, mesmo que os vossos leitores possam nunca ter passado tanta
música como agora. Posto isto, e sem delongas escusadas e presunçosas, invoco
talvez a melhor (e mais inspiradora) banda sonora para o momento -
"4'33" de John Cage "interpretado" por William Marx.
NO VÃO DA ESCADA #2 - A música perfeita
Reviewed by POBPOB
on
julho 29, 2020
Rating: 5